Memória fantasma

A ideia de ter uma imagem clara na mente, imagem que não faz parte da minha memória pessoal, permeou meu processo criativo durante a execução da instalação Memória fantasma. A cada relato que ouvia, sentia como se tivesse presenciado cada uma dessas cenas, especialmente quando chegamos à estação ferroviária. Ouvir a história de um colega que, na infância, esperava o pai naquele local, parecia tão real quanto minhas próprias lembranças das vezes que frequentei a Casa do Hip Hop, que por um tempo foi instalada no mesmo prédio, ou das aulas de malabarismo que também aconteciam lá.

Movido pela curiosidade, comecei a pesquisar outras histórias e registros da Estação Central Noroeste do Brasil. Aos poucos, percebi que o que mais me interessava não era o espaço em si, mas as memórias que o envolviam. Passei, então, a buscar relatos de histórias ligadas àquele equipamento urbano, sem me preocupar com a veracidade das memórias ou fatos históricos registrados oficialmente. O que me chamava a atenção era a percepção única que cada relato oferecia sobre a estação.

Lembrei-me de uma conversa na qual me disseram que grandes cargas de laranja passavam por Bauru e que, por isso, a estação tinha cheiro de laranja. Soube também da passagem de figuras importantes do meio político e encontrei algumas fotografias antigas de pessoas apressadas embarcando e desembarcando dos trens. Aos poucos, uma imagem dessas histórias se sobrepondo e cobrindo a estação ferroviária começou a surgir, eternizando-a no tempo, assim como acontece no processo de fossilização, a partir do momento em que algo é soterrado. Assim como um fóssil guarda informações genéticas e geológicas, aquele prédio guarda histórias de vidas inteiras – alegrias e desencontros, tristezas e reencontros.

A partir desse ponto, como um arqueólogo, comecei a reunir amostras que me pareciam úteis. Passei a interpretar cada uma dessas memórias que pairavam sobre mim como fantasmas e comecei a registrá-las graficamente com desenhos. Escolhi representar imagens que pudessem se ligar a memórias distintas, como a chegada de um ente querido que passou um tempo fora ou uma lembrança de infância.

Na figura com chapéu, tentei sintetizar o trabalho daqueles que construíram o prédio ou que, em algum momento, passaram por ele em sua vida profissional – figuras muitas vezes sem destaque na história, mas que foram fundamentais em seu tempo. Achei importante a presença do trem, pois ele foi um grande personagem em vários relatos que ouvi. Ao fundo da obra está a fachada da estação e o arco com o nome da cidade, localizado logo em sua entrada para quem chegava de trem. Além de ser um ornamento decorativo, me lembra muito um tipo de portal que, ao ser atravessado, nos expõe a diversas memórias que ficam ali, apenas esperando para serem vistas.

Para este trabalho, decidi usar materiais com os quais já tinha familiaridade, mas que nunca havia combinado em uma obra: o spray e suas várias técnicas de uso, que venho aprimorando há cerca de dez anos com a prática do graffiti, e o MDF, material com o qual tive muito contato durante o tempo em que trabalhei como ajudante de marceneiro. Algo curioso é que realizei a montagem da obra na oficina de marcenaria do Museu Histórico Municipal de Bauru, que fica alojada nas instalações da ferrovia. Com isso, deixei por lá mais uma lâmina de memória, algumas camadas de serragem e tinta em spray.

João Risu

fotos: Marilia Vasconcellos